segunda-feira, 14 de maio de 2018

LULA, AS PROVAS E A JUDICIOSA PEGADINHA


"'Lula foi condenado sem provas!', afirmam alguns, inclusive eu.

“Os juízes entenderam que os elementos apresentados pela acusação são provas”, respondem outros.

Que coisa, então o que são provas? Qual o limite entre indício e prova? Entre suposições e fatos? Entre narrativa e verdade?
Bueno, eu não ignoro que na atual e irracional polarização que reina no Brasil, prova é qualquer coisa que sirva para condenar inimigos ou adversários políticos.
Mas isso é muito perigoso, significa colocar nas mãos do Judiciário um poder que ele não deve e não pode ter: o de definir casuisticamente o que é prova e quais estes limites.
Eu não tenho formação jurídica, tampouco li qualquer coisa na doutrina do Direito a respeito, então, minhas palavras baseiam-se apenas na lógica racional. Afinal, a definição das condições da nossa liberdade é por demais importante para ficar apenas na mão dos juristas! E tem que ser assim mesmo, ou provas são algo ao alcance de um leigo, ou os tribunais de júri popular seriam farsas.
Então, vou definir o que a meu ver seja esta tal “prova”, porque eu acho que é uma questão mais simples do que se coloca normalmente, e até fácil de entender, aceitar e resolver.
Num contexto de Direito dos países civilizados, em que a dúvida sempre deve beneficiar o réu, prova é todo e qualquer elemento objetivo que permita a construção de uma “narrativa” explicativa razoável, crível e incontroversa dos fatos, ou seja, que não suscite dúvidas. Só isto transformaria indícios em prova, suposições em verdades.
Porém, se para o mesmo conjunto de elementos de indícios juntados a um processo se pode construir outra narrativa, alternativa à acusatória, que seja ao mesmo tempo razoável e crível, então aqueles elementos não provam nada, não são evidências nem provas. E se eles não provam, a escolha de qual narrativa aderir depende apenas da crença e das convicções formadas na cabeça do Juiz. Assim se pode dizer que ele decidiu sem provas, mas por crença ou por convicção, que, como se sabe, tem fundamentações eminentemente subjetivas. Outro Juiz poderia decidir em sentido contrário, aderindo a outra narrativa igualmente razoável e crível.
Então, pode-se dizer que a sentença não afirma uma “verdade”, é só uma narrativa que tem “efeitos de verdade”, mesmo sem ter sido comprovada verdadeira ou falsa.
Isto acontece muito no campo da produção de conhecimento, na ciência por exemplo, e com diferentes consequências. Em ciência as provas nunca vão além da descrição de fatos, seja por meio de inferências ou deduções. Para além dos fatos só é legítimo falar em teorias, conjecturas ou hipóteses, nunca em provas. Por isso Karl Popper, o maior filósofo da ciência do século XX, afirmava que todo o conhecimento científico é apenas provável e provisório. Ou seja, nunca é "comprovado". Por isto também os cientistas estão sempre revendo e retestando suas afirmações e as de seus colegas, e assim a ciência progride, de certa maneira, beneficiada exatamente pela dúvida que as próprias afirmações científicas geram, devido a precariedade e provisoriedade dos conhecimentos já alcançados.
A "comprovação" de uma Tese acusatória não é diferente da científica: ou ela é assentada em fatos que não podem ter outra explicação que não aquela, ou ela é só teoria, conjectura, hipótese, narrativa. E quando a implicação desta é a liberdade, a prisão, a vida ou a morte de alguém, como no campo do Direito criminal, os danos do erro são sempre irreparáveis. Então, não pode haver progresso em cima da dúvida nem da precariedade da verdade alcançada, como na ciência. Ao contrário, a dúvida sempre deveria beneficiar o réu. Se a vida e a liberdade são nossos maiores valores, é melhor inocentar um culpado que condenar um inocente.
Esta é minha tese sobre o que é uma “prova”.
E como isto se aplica ao caso da condenação do Lula?
Bem, eu fui atrás das provas, votei no Lula e também queria saber da sua inocência ou culpa. E encontrei o seguinte.
As provas apresentadas pelos procuradores e sustentadas na sentença do Moro são de três tipos.
Um primeiro tipo que evidencia o interesse da família Lula da Silva no tal tríplex bem como contatos de negociação com a OAS (contrato não assinado com alteração no número do AP que a Dona Mariza tinha quota para o Triplex; vários testemunhos de visitas de integrantes da família Lula da Silva para ver o imóvel).
Um segundo tipo evidencia que havia uma negociação do imóvel diretamente com diretores da OAS e que esta estava preparando-o para a família do ex-Presidente (mensagens de celular de diretores da OAS referindo-se à preparação do imóvel para o Lula; testemunhos declarando que o imóvel estava reservado para o Lula desde 2011; notas fiscais da reforma do imóvel pela OAS; testemunhos de funcionários da OAS informando que a empresa não costumava personalizar imóveis).
E um terceiro tipo decorre de delações premiadas, de Agenor Franklin, diretor da OAS, confirmando o pagamento de propinas na Petrobras e que “ouviu dizer” que o triplex seria debitado do crédito do PT com vantagens indevidas; e de Leo Pinheiro, ex-presidente da OAS, confirmando o esquema criminoso da Petrobras e que havia se reunido com Lula para tratar do triplex em 2014.
Agora vamos ao "teste da prova".
A pergunta a fazer para transformá-los em prova ou não é a seguinte: estes elementos de indícios usados como prova pelos procuradores e pelo juiz Moro, comportam uma narrativa alternativa, não criminosa, que seja razoável e crível?
A meu ver sim, e com muita facilidade. Até mais razoável e crível que a da condenação; acho, inclusive, que seria a primeira a se pensar caso uma das partes não fosse o Lula.
Vamos a ela, então.
As “provas” dos tipos 1 e 2 mostram apenas que a família Lula da Silva tinha interesse no apartamento, que o substituiria pela quota inicial que Dona Mariza possuía ainda do tempo da Cooperativa, e que a princípio a OAS o teria reservado ao ex-Presidente. Também mostra que a Empreiteira teria trabalhado na personalização do apartamento, e que os próprios diretores da empresa teriam se envolvido na apresentação do produto ao Ex-Presidente e sua família, mesmo que isto não fosse usual.
Até aqui não há crime. Lula poderia estar negociando a compra do imóvel, como ele afirmou na sua defesa, e ele teria dinheiro para fazer isso com folga.
Não sei se ocorre aos incautos que aceitam certas ilações maldosas, mas em 2011, além de ser um recente ex-Presidente com dois mandatos bem sucedidos na maior economia da América Latina, que deixou o Governo com a maior aprovação da história, Lula era uma das personalidades mais influentes do mundo. Era “O Cara”, como disse o Obama certa vez. Agora me digam, qual dono de empreiteira não iria querer tê-lo como inquilino, e qual Diretor deixaria de apresentar e negociar pessoalmente o imóvel com uma personalidade pública daquelas, e dar tratamento especial às suas demandas a ponto de reformar o imóvel? Sabe-se que os corretores do prédio inclusive usavam isto como marketing de vendas à época, informando aos clientes: “olha, este é o prédio onde vai morar o ex-Presidente Lula!”. Convenhamos, tem gente que parece sugerir que ele deveria ser tratado como um comprador qualquer. Isso é uma besteira. Mesmo porque, diretores de grandes empresas estão sempre querendo se aproximar de figuras públicas influentes, não só por suas relações no Brasil mas também em inúmeros países onde elas têm interesses.
Ainda não há crime algum nisso, apenas uma transação comercial com o tamanho da importância do possível comprador.
Uma narrativa mais suspeitosa até poderia cogitar que ao invés de comprar, Lula tinha mesmo a intenção de receber o imóvel como uma benesse da empreiteira. Mas o fato é que não recebeu, e na legislação brasileira, intenção não é crime. Você pode ter tido a intenção de matar alguém, fez até planos, mas se não tentou nem consumou o assassinato, não houve crime. Ao menos uma tentativa frustrada teria de haver para tipificar como “tentativa de homicídio”, mas só a intenção não vale.
Bem, sobraram os indícios/provas do tipo 3, duas delações, que, sinceramente, teriam mais razões para serem mentirosas do que verdadeiras. Uma é baseada no famoso e pouco comprometedor “ouvi falar”, forma ardilosa de insinuar algo sem se comprometer com a veracidade do que diz. A outra, do Leo Pinheiro, todos conhecem, ele tinha uma negociação de delação premiada travada porque havia inocentado o Lula, e só fechou a delação quando deu esta versão dos fatos; com isso conseguiu uma fabulosa redução de pena, de 26 para 3,5 anos de prisão (qual corrupto encrencado com a justiça não mentiria com um prêmio destes?). Como ao mesmo tempo ele era réu, não tinha obrigação de falar a verdade, e como se sabe, já existe jurisprudência de que delação sem provas não tem valor (aliás, o próprio Ministério Público havia negado sua delação por não apresentar provas). Além disso, sua suposta mentira seria um “crime perfeito”: ele mente para ganhar a redução de pena, e não pode desmentir-se pois anularia o acordo e perderia o benefício. Seguro para todas as partes, menos para o Lula.
Então minha pergunta é, toda esta narrativa que eu construí, e que faz parte da defesa do ex-Presidente, explica de forma razoável e crível os indícios apresentados? Imagine que esta explicação fosse dada para uma pessoa neutra, que não tivesse nenhuma preferência inicial por uma delas.
Eu tenho certeza que sim, e a uma pessoa neutra esta convenceria mais que a narrativa da acusação. Assim sendo, aqueles elementos não provam nada, nem que esta aqui está correta, nem a que ensejou a condenação. E se não provam, não podem ser provas.
Como não há prova, restou aos julgadores apenas a preferência por adotar uma das narrativas/conjecturas/hipóteses apresentadas ao invés da outra, o que só pode ser explicado pelas crenças, interesses, valores ou qualquer outro elemento subjetivo dos mesmos.
Mas quando a convicção ou a crença substituem a prova, a dúvida pode se voltar contra o réu, como aconteceu no caso Lula, e isto depende apenas da cabeça do Juiz.
Na dúvida, condene-se! É isto que está implícito ai, esta é a perversidade do jogo.
Mas de uma coisa eu não tenho dúvidas, após fazer este exame da prova: Lula foi condenado sem provas."



(De Renato Souza, post intitulado "O que é prova? A pegadinha que jogou a Justiça do Brasil na lama", publicado no Jornal GGN - AQUI.

"Eu não tenho formação jurídica, tampouco li qualquer coisa na doutrina do Direito a respeito, então, minhas palavras baseiam-se apenas na lógica racional."

Lógica racional?! Nos tempos hodiernos?!!

Ironias à parte, consistente argumentação - a qual subscrevemos).

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